quarta-feira, 3 de março de 2010

"Um amor conquistado: o mito do amor materno"

Finalmente terminei de ler o livro de Elisabeth Badinter, Um Amor Conquistado: o mito do amor materno. Comecei a lê-lo despretensiosamente ao final das aulas do ano passado, passei as férias toda envolvido com ele e terminei ontem. Nada mais justo que comemorar o Dia Internacional da Mulher publicando uma resenha. A autora faz um histórico das representações e dos papéis sociais da mulher, do homem e da infância desde o século XVII até meados do século XIX, enfocando as relações familiares e o significado do amor. No início do século XVII as relações familiares eram dominadas pelo medo, fundamentadas na autoridade paterna e na concepção que a criança é símbolo da força do mal, fruto do pecado original, ambas pautadas no predomínio da ideologia religiosa dominante. No início do século XVIII, com o advento do racionalismo iluminista e com base na teoria de Descartes, a criança deixa de ser fruto do pecado para ser fonte do erro. “Desprovida de discernimento e de crítica, a alma infantil se deixa guiar pelas sensações de prazer e de dor: está condenada ao erro perpétuo. É preciso, portanto, livrar-se da infância como de um mal. O fato de todo homem ter sido antes necessariamente criança é que constitui a causa de seus erros” (p. 62). Na metade do século XVIII a criança passa a ser considerada como um brinquedo do qual proporciona prazer aos pais. “É uma espécie de pequeno ser sem personalidade, um ‘jogo’ nas mãos dos adultos. Assim que deixa de distrair, deixa de interessar” (p. 78). Neste contexto de compreender o papel da infância a autora vai definindo igualmente o papel materno e paterno. Uma das questões interessantes que ela levanta é a indiferença dos pais frente aos filhos, sobretudo, devido ao alto índice de mortalidade. Afinal, “como seria possível interessar-se por um pequeno ser que tinha tantas possibilidades de morrer antes de um ano?” (p. 85). No entanto, Badinter observa com mais atenção os dados e faz a seguinte inversão: “não é porque as crianças morriam como moscas que as mães se interessavam pouco por elas. Mas é em grande parte porque elas não se interessavam que as crianças morriam em tão grande número” (p. 87). De fato, algo a ser refletido e que Badinter deixa em aberto, pois ora ou outra assume uma posição contraditória. No meu ponto de vista seria o mesmo que responder: “tostines é fresquinha porque vende mais ou vende mais porque é fresquinha?”. Eis a questão. O fato é que conforme a autora “em certas paróquias, como em Anjou, nenhum dos pais se dava ao trabalho de comparecer ao enterro de um filho de menos de cinco anos” (p. 89). O que é contraposto pelo fato de que muitos pais não ficavam sabendo da morte dos filhos, visto que os entregavam às amas de leite e só recebiam a notícias muito depois da morte. “É preciso dizer que não se empenham muito em manter-se informados da saúde do filho” (p. 90). Para Badinter, ao sentimento dos pais sempre perpassou a necessidade de como livrar-se dos filhos mantendo a cabeça erguida. Tanto que a criação e fortalecimento da escola atenderam de forma satisfatória a tal sentimento, ocorrendo um aumento significativo de alunos na metade do século XVIII. Será “no último terço do século XVIII que se opera uma espécie de revolução das mentalidades. A imagem da mãe, de seu papel e de sua importância, modifica-se radicalmente, ainda que, na prática, os comportamentos tardassem a se alterar” (p. 145). Esta mudança da mentalidade é fruto do discurso da valorização da criança, que para a autora torna-se um valor mercantil, pois o aumento da população aumenta a riqueza do Estado. A imagem da mulher e mãe também começa a se modificar, visto que, “por um lado, a nova moda do casamento por amor, que transforma a esposa em companheira querida. Por outro, os homens responsáveis querem que as mulheres desempenhem um papel mais importante na família, e notadamente junto dos filhos” (p. 173). É interessante notar a significativa influência da doutrina católica na imagem feminina. Ao término do século XVIII “a mulher não é mais identificada à serpente do Gênesis, ou a uma criatura astuta e diabólica que é preciso pôr na linha. Ela se transforma numa pessoa doce e sensata, de quem se espera o comedimento e indulgência. Eva cede lugar, docemente, a Maria. A curiosa, a ambiciosa, a audaciosa metamorfoseia-se numa criatura modesta e ponderada, cujas ambições não ultrapassam os limites do lar” (p. 176). A felicidade ou infelicidade dos filhos são progressivamente atribuídas aos pais. “No século XX, ela alcançará seu apogeu graças à teoria psicanalítica. Podemos dizer desde já que se o século XVIII a confirmou, acentuando a responsabilidade da mãe, o século XX transformou o conceito de responsabilidade materna no de culpa materna” (p. 179). Será no início do século XIX que a maternidade ganhará destaque e a libertação da criança da carga negativa representará a alienação da mulher-mãe, visto a valorização da intimidade familiar e da singularidade infantil, configurando o filho como recompensa de uma carência afetiva e social. Define-se a entrega incondicional e dedicação integral como ideal de boa mãe, criando-se um mal estar inconsciente às mulheres que não se encaixavam neste modelo, vivendo sob o signo da culpa e da frustração. “Talvez tenham feito o máximo esforço para imitar a boa mãe, mas, não encontrando nisso a própria satisfação, estragaram sua vida e a de seus filhos. Aí está, provavelmente, a origem comum da infelicidade e, mais tarde da neurose, de muitas crianças e de suas mães” (p. 255). Com o fortalecimento da ideologia do devotamento e do sacrifício a felicidade da mulher se confronta a ambição feminina e a criança começa a ganhar o status de salvação, pois os sofrimentos da maternidade são o tributo pago pelas mulheres para ganhar o céu. “Entre a mãe e a criança, o século escolheu salvar a criança e imolar a mãe. Nesse sacrifício de si, a mulher encontrava ao mesmo tempo sua razão de ser e seu prazer. A mãe era de fato masoquista” (p. 270). No século XX a psicanálise dará profundidade a tais ideias, pois “quer se queira ou não, a psicanálise levou a pensar, durante muito tempo, que uma criança afetivamente infeliz é filho ou filha de uma mãe má, mesmo que o termo ‘má’ não tenha aqui nenhuma conotação moral” (p. 295). Pautado na ideia da inveja do pênis, Freud reivindica que a feminilidade normal será desenvolvida a partir do momento em que a mulher abandonar o desejo do pênis pelo do filho. De fato, Freud afirma equivocadamente tal concepção e desconsidera a cultura patriarcal a qual está imerso. Vale a pena transcrever um trecho que questiona esta concepção: “Freud supõe também que a menina compara – desfavoravelmente para si mesma – esse sexo visível que é o pênis de um menino e experimenta um ciúme imediato. Por que, pergunta Kate Millet, o que é maior seria considerado melhor? Por que a menina não consideraria seu corpo como a norma e o pênis como uma excrescência antiestética? Por fim, em que se baseia Freud para afirmar que o pênis pareceria à menina mais apropriado à masturbação do que o próprio clitóris? São todas questões a que Freud nunca respondeu, não tendo fornecido nenhuma prova objetiva para sustentar sua noção de inveja do pênis ou de complexo de castração feminino” (p. 333). Por fim, com base na ideia de que não existe comportamento materno unificado para que se possa falar de instinto materno “em si”, pois a autora não encontra nenhuma conduta universal e necessária da mãe, nasce a convicção de que o instinto materno é um mito. “Como então, não chegar à conclusão, mesmo que ela pareça cruel, de que o amor materno é apenas um sentimento e, como tal, essencialmente contingente? Esse sentimento pode existir ou não existir; ser e desaparecer. Mostrar-se forte ou frágil. Preferir um filho ou entregar-se a todos. Tudo depende da mãe, de sua história e da História. Não, não há uma lei universal nessa matéria, que escapa ao determinismo natural. O amor materno não é inerente às mulheres. É ‘adicional’” (p. 367).